“O LAÇO SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE"
Na perspectiva de um mundo contemporâneo onde a pluralização dos nomes do Pai se dá justamente porque a autoridade já não é tão imponente e a castração já não é tão ameaçadora, encontramos indivíduos cada vez mais singulares e laços sociais cada vez mais frouxos.
Temos hoje múltiplos mundos, eu diria até que “mundos particulares", no qual cada sujeito se arranja à sua própria maneira. Esses mundos singulares estão diretamente ligados ao gozo que é absolutamente singular e não faz laço.
A partir da constatação de que, se tem um corpo, e não, se é um corpo, o sujeito passa a manifestar suas expectativas sobre esse corpo e o falasser confere a ele uma consistência.
Hoje pode-se ter quase tudo que se imagina pois não há muito espaço para a falta. Os “mundos particulares” podem ser produzidos e concretizados. O que antes fazia parte apenas da fantasia, da ficção, hoje, em grande parte, é realizável, e, com tantos sonhos sendo realizados, com tantas opções de tudo, os sujeitos estão ficando cada vez mais sem saber o que sonhar e estão cada vez mais se sentindo frustrados e vazios. Como é o desejo que faz a “roda” girar, tudo está ficando estagnado, um pouco sem sentido, embora ilusoriamente pareça que está freneticamente em movimento.
O advento da A.I. (Artificial Intelligence) mudou toda a forma como percebemos o mundo que antes era apenas físico e agora é também virtual. Vivemos hoje, em várias realidades simultaneamente.
Num mundo com tantas opções, se torna por vezes difícil de escolher, e isso gera um vazio que tentamos preencher com uma certa “ padronização dos corpos” que estão cada vez mais andrógenos. Essa padronização pode ser interpretada como uma tentativa de se reconhecer em um grupo, de pertencer a algo, embora os laços sociais só se deem a partir de um ponto de interesse comum e só continuem a existir enquanto esse interesse estiver vivo.
O masculino vem perdendo seu lugar de destaque de poder dando espaço ao “não todo fálico”, ou feminino. Esse femino que aos poucos vem se impondo cada vez mais na contemporaneidade com seu útero interno, que não fica a mostra, cheio de criatividade, que é capaz de gerar vidas.
O mistério do feminino vem preponderando sobre o patriarcado obsoleto e exposto, que, com suas respostas previsíveis, dominou por muito tempo, através da força. As possibilidades inúmeras trazidas pelo feminino, trazidas inclusive no corpo, abrem um leque que o masculino não tem como competir.
O nome do Pai traz a lei, a ordem, a organização, o previsível, já o “não todo fálico” traz o desconhecido que está ligado à imaginação, a fantasia mas que também pode estar relacionado ao delírio, ao Real.
O funcionamento do masculino sempre foi básico e previsível e o feminino sempre foi o oposto disso. As mulheres sempre tiveram uma gama infinita de possibilidades passando pelo modo diversificado de se vestir como roupas, sapatos, bolsas, chapéus, acessórios, roupas íntimas, roupas de dormir, roupas de banho, roupas de qualquer coisa, tudo muito variado com cores, formas, texturas, brilhos, etc. É como se a mulher pudesse ter acesso a “todos os tipos de gozo” pois ela está com “um pé no gozo fálico e outro no gozo do corpo". Enquanto gozo fálico, o brinco nas orelhas pode significar o substituto do falo, mas enquanto gozo do corpo, esse mesmo brinco pode funcionar como “sinthoma” que amarra o Real/Simbólico/Imaginário.
Acredito que alguns homens, não todos, mas uma boa parte, sentem um pouco de inveja diante de tantas possibilidades dadas exclusivamente ao feminino, de “arranjar o corpo a sua maneira”, e por isso vão de encontro a diversidade que está cada vez mais evidente. Talvez Scherber não estivesse tão delirante ao almejar uma emasculação que nos dias atuais até se tornou uma tendência, embora saibamos que havia outros motivos para ele a desejar.
Por outro lado, algumas mulheres estão se libertando dessas inúmeras possibilidades dadas ao feminino e estão transcendendo a um novo nível no qual a aparência já não é a principal questão mas sim o sentir.
A mulher, por ser um ser “não todo fálico”, por não ter “nada a perder”, já que não tem o falo, é livre, o homem, por outro lado, sempre está sob ameaça da castração. Porém, acho que essa questão está além de perder o falo, pois o falo, na contemporaneidade, já não tem tanta importância quanto antes. Hoje, quem não tem o falo pode facilmente adquirir um, sendo através de prótese ou através de objetos. Ao mesmo tempo, quem o tem mas quer se livrar dele, também pode fazer isso de maneira segura através de cirurgias. Óbvio que estamos falando aqui literalmente de um falo. Sendo assim, no campo do Imaginário ou do Real, onde é mesmo que está a importância do falo nos dias de hoje? Qual é a autoridade reconhecida hoje? Quem ou o que preconiza a lei?
Importante dizer que não se trata apenas de homens e mulheres, sobre a castração ou a ameaça dela, o que está em evidência são as escolhas dos indivíduos e os tipos de arranjo que cada um faz para si, independente das opções sexuais. As pessoas que, cada dia mais, por conta dessa lei que na modernidade vem encontrando dificuldade para se estabelecer e por conta dessa pluralização dos nomes do Pai, estão buscando “inventar” um modo de existir, dentro ou fora da norma fálica, cada qual, a sua maneira.
Homens, mulheres, pessoas, mediante a singularidade do gozo e diante de tantas possibilidades de se haver com a falta, estão cada vez mais buscando caminhos diversos que, embora muita vezes estejam até vinculados a um determinado grupo e, supostamente fazendo um laço social, o que impera no mundo moderno na verdade é a individualidade. O indivíduo tenta reconhecer dentro de si mesmo, não apenas a porção homem ou a porção mulher, mas ambas as partes que coabitam juntas dentro de cada um de nós e nos tornam seres humanos. Independente da nossa constituição físico/biológica todos temos uma porção yin e uma porção yang dentro de nós e precisamos encontrar nosso ponto de equilíbrio.
Penso que nós, enquanto seres humanos, devemos encontrar o humano dentro de nosso ser e enquanto humanidade nos reconhecermos todos interligados, amenizando as nossas diferenças, respeitando a nossa diversidade e entendendo que habitamos todos a mesma casa, o planeta Terra, e fazemos parte de um gigantesco laço social. Somos um SER, dentro de um corpo, com inúmeras possibilidades, buscando a nossa igualdade em meio a tantas diferenças.
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